17 de fev. de 2011

Qualidade em educação - RUBEM ALVES.


O corpo humano é dotado de sensíveis mecanismos de "controle de qualidade". Não só o corpo humano. Até o dos bichos. O cachorro cheira com o nariz antes de pegar com a boca: ele não é bobo. Procedimento igual ao da dona-de-casa que cheira o peixe antes de comprá-lo. Ao da cozinheira que prova a moqueca antes de servi-la. Ao do violeiro que afina a viola antes de tocar. Tudo isso é teste de qualidade.
A educação, na medida em que lida com a vida de pessoas e a vida do país, deve ser a área mais rigorosamente testada. É preciso que ela seja excelente. Entretanto, é a área em que os testes são mais difíceis.
Avaliações, vestibulares e provões quase nada significam: nada garante que a qualidade medida por critérios acadêmicos numéricos consiga passar nos testes que a vida impõe. "Na Escola, 10; na Vida, 0": título (ou quase) de um livro que mostra que a excelência escolar não pode ser tomada como índice para avaliar o desempenho na vida.
Um professor da Faculdade de Medicina da Unicamp, por ocasião dos vestibulares, me dizia: "Pena. Muitos dos que vão passar com as maiores notas não conseguirão ser médicos. Uma inteligência que foi treinada para descobrir uma resposta certa entre cinco dificilmente consegue lidar com os problemas da clínica médica. A vida não é vestibular. Há certos saberes que aleijam a inteligência".
Na ordem das prioridades governamentais eu coloco a educação em primeiro lugar. Para o país, ela cria as condições para um aumento do bem-estar social. Para o indivíduo, ela aumenta as possibilidades de vida, prazer e alegria.
Pus-me então a imaginar um mecanismo que permitisse avaliar a qualidade da educação. Veio-me, então, uma idéia inspirada no "provão". Um "examão" gigantesco, a ser realizado no período de um mês.
Nele entrariam todos os conteúdos curriculares pelos quais o aluno passou: raiz quadrada, equação do 2º grau, juros compostos, problemas genéticos de cruzamento de coelhos brancos com coelhos pretos, taxionomia botânica e zoológica, meiose e mitose, conversão de Celsius em Fahrenheit, as guerras do Peloponeso, as guerras púnicas, a civilização etrusca, o gótico e o romântico, análise sintática, escolas literárias, reações químicas -tudo, tudo incluído no programa do "examão".
Aos alunos horrorizados eu digo: "Tranquilizem-se. As provas não serão assinadas. Não são vocês, alunos, que estão sendo avaliados. É o sistema educacional. Máquina gigantesca, milhares de professores, milhões de alunos, milhares de prédios, toneladas de material escolar, milhares de horas/aula, milhares de informações, milhares de avaliações, um tempo de vida que não pode ser computado, além do sofrimento de filhos e pais e quantia de dinheiro incalculável".
O objetivo declarado dessa máquina é passar para os alunos o conhecimento definido pelos currículos. A relação matemática entre 1) a soma de conhecimentos supostamente dados e 2) o conhecimento que ficou incorporado no aluno define a qualidade da máquina.
O objetivo do "examão" é verificar essa relação. Meu palpite é que, na melhor das hipóteses, os alunos não terão incorporado mais que 5% dos conhecimentos supostamente dados. Uma máquina com 5% de rendimento está reprovada.
Os mecânicos da educação tratarão de consertar a máquina, convencidos de que ela necessita de ajustamentos e peças novas. Eu, ao contrário, acho que não há nada de errado com a máquina. Não há o que consertar.
Acontece que os alunos -mais precisamente os corpos dos alunos- têm também seus mecanismos de "controle de qualidade". Se eles não aprendem é porque os seus corpos "reprovam" a máquina. Vomitam o que a máquina lhes enfia pela goela abaixo. O resultado do "examão" seria a prova disto.
Nietzsche, no seu ensaio sobre Tales, refere-se às coisas "dignas de serem conhecidas". A inteligência funciona como o aparelho digestivo: ela "testa" os sabores, e somente aqueles que são dignos de serem aprendidos são comidos, digeridos e incorporados. Os outros são vomitados. A recusa à aprendizagem é o vômito daquilo que o sistema educacional quer impor, mas que não faz sentido para os alunos.
Os mecânicos da educação tendem a pensar que o problema da educação é um problema de meios, meios sendo um conceito amplo que vai desde didática e psicologia até computadores, laboratórios, televisões e parafernálias educacionais semelhantes.
A forma mais comum dessa filosofia mecânica aparece como a queixa de "falta de fundos para a educação". Digo que, quando a máquina como um todo está errada, as tentativas de consertá-la só levam a um agravamento do problema. Panelas importadas são inúteis para um mau cozinheiro.
O corpo humano é sábio. Tem idéias próprias. E ele, seguindo seus critérios de "controle de qualidade", só aprende dois tipos de conteúdos. Primeiro, aqueles que dão prazer: o fruto desejável. Segundo, o meio para chegar ao objeto de prazer: a vara para apanhar o fruto.
Na sua esmagadora maioria, os conteúdos curriculares processados pela máquina monstruosa nem são objeto de prazer nem são percebidos pelos alunos como meios para chegar a coisa alguma, a não ser passar no vestibular. O fato é que os alunos não sabem a razão de ter de aprender o que estão sendo forçados a aprender.
A máquina funciona como deve. O problema é que a comida que ela serve é imprópria para a inteligência. A questão não é mudar as panelas. A questão é mudar o menu.

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